O Letrismo/Situacionismo de Gil J. Wolman

excerto de O Mito fílmico de Guy Debord, por Juliana Szabluk

Para os letristas*, a criatividade humana é a principal motivação do homem: o foco sócio-político seria natimorto se o agente da mudança não tivesse um espírito livre e criativo. A paixão pela totalidade da vida seria a motivação maior que faria o homem ampliar seu espírito para a construção do cotidiano.

Isidore Isou, criador do Letrismo, se embasou no poeta Lautréamont (Isidore Ducasse) para construir sua Arte Supertemporal, em que o público tem participação ativa como criador e interventor. O conceito de criação, aqui, vai além do processo do produzir arte e abrange todas as esferas do conhecimento, sendo a criação a causa máxima para impulsionar o homem à consciente necessidade de ultrapassar a beleza e liberdade artística e transpô-la à vida:

o motor da evolução social não foi o instinto de sobrevivência, mas sim a vontade de criar. Por meio da vontade de criação, o artista foi da infantil existência inconsciente para a eternidade do construir uma história consciente.

Isou, em sua análise sistemática da arte, percebeu um padrão na história da arte constituído por dois movimentos complementares: as fases de ampliação (amplique) e de cinzelamento (ciselant). A ampliação e o cinzelamento são a perfeita sistematização dos processos de vida e morte das disciplinas e movimentos da arte. Analisando não apenas a arte, mas como todos os sistemas de linguagem humanos, Isou percebe que a letra é a mais rica das partículas constitutivas destes sistemas, por ser o denominador comum a todas as linguagens. Assim, Isou parte em busca do enriquecimento da letra, a única saída para reunir o que foi separado – o homem de sua linguagem e a linguagem de si mesma para retomar a comunicação humana verdadeira, além diálogo, além discurso. Por definição, temos:

- Ampliação: qualidade da lei estética, o enriquecimento do elemento e das combinações estilísticas.
- Cinzelamento: qualidade da lei estética, a destruição do elemento e das combinações estilísticas.

O cinzelamento unido à ampliação resultaria na Lei estética das duas hipóteses:

Qualquer expressão estética é constituída por dois movimentos que se seguem de forma irreversível. Um descobre, primeiramente, o enriquecimento do elemento e das combinações estéticas, e, então, o exame deste elemento até chegar à sua destruição.


Isou propõe que esta alternância se iniciou na ampliação da poesia ocidental com Homero e foi até Vitor Hugo. A primeira fase cinzelante de destruição é inaugurada com Baudelaire e sua crítica radical ao desligamento da poesia e da linguagem, em sua busca para reunir o mundo moderno, a imagem e as palavras em uma nova estrutura poética ligada com a verdade humana. A destruição, nos termos de Isou, ao contrário da negação Dadá, é um caminho para a expansão e para a utilização positiva e prática das partículas existentes, que segue um longo movimento de redução em busca da pureza.

Passando da evolução espiritual, a linguagem rumaria ao cinzelamento de seus meios materiais. Em sua procura pelo perfeito equilíbrio entre as possibilidades da linguagem, a narrativa perde seus excessos, chega à anedota e prossegue até o verso. A exploração da forma reconhece o poder da palavra tanto como significado quanto como imagem. Potencializada, a palavra pode construir metáforas, criar novas formas e dominar a página. A evolução das partículas constitutivas, portanto, era a desconstrução material da própria linguagem. Baudelaire ultrapassa a anedota, a reduz, e chega à poesia, que se destrói nos versos de Verlaine. O verso ruma às palavras de Rimbaud, vai das palavras aos padrões de som e espaço de Mallarmé e, finalmente, ao nada sem sentido de Tzara.

Para Isou, a Lei das Duas Hipóteses ocorre em todos os domínios, que vinham se "destruindo" (se reduzindo à sua pureza) em suas fases de cinzelamento até chegarem, simultaneamente, em uma etapa que exigia a ampliação. Das dezenas de campos analisados por Isou, apontamos o que ele considera o ponto máximo do cinzelamento em alguns nomes:

* filosofia de Heidegger
* a fotografia de Man Ray
* a arquitetura de Le Corbusier
* o teatro de Pirandello
* o romance de Joyce
* as ideias sobre economia de Paul Goodman
* o cinema de Jean Cocteau
* os quarks de Murray Freezing-Mann

Nem a figura de Deus escapou da lei de Isou. Deus, como um modelo externo de poder e de existência plena, iniciou sua ampliação em Feuerbach e foi até o proletário de Marx, Engels e Lênin. Em suma, tudo aquilo que constitui a humanidade enquanto tal havia chegado ao seu limite.

Para Isou, este limite correspondia a uma harmonia monótona e falta de espaço para o prosseguimento da expansão, que impossibilitava qualquer inovação criativa. O conjunto era tão aceito em seu resultado final, que se desligava da exploração dos próprios elementos que o compunham.

No caso do cinema, a relação imagem-som, estabelecida como a definição da sétima arte em si, se expandia no sentido de criar mais e mais coesão entre estes dois elementos. A busca pela expansão do conceito final deixava de lado a riqueza que cada elemento possuía separadamente dentro do próprio filme.

O cinema, no estado que se encontrava, já nascia repleto de pré-definições, de poucos caminhos a seguir limitados pela própria pobreza de seus componentes e aceitação dos criadores. Porém, após a ampliação total e a autonomia de cada elemento, as possibilidades de criação seriam ilimitadas. Som, imagem, tempo, enquadramento – até o espectador, que se resumia a assistir –, alcançariam uma autonomia tamanha, que adquiririam, em si, a riqueza do próprio filme. Reunidos novamente e coexistindo na tela, os elementos expandidos dariam origem à Arte Infinitesimal (Art Infinitésimal) ou à ciência do Esthapéïrisme, do grego esth: estética, e apéiros: inumerável ou infinito.

Em máxima instância, a busca de Isou, ainda muito ligada aos ideais surrealistas e das vanguardas anteriores, é aquela que, coerentemente, critica o plano de Breton negativamente e o ultrapassa positivamente: cria a estratégia para realização do sonho concreto e real. Para alcançar a liberdade humana primeira, estando esta frente à racionalidade estratégica do sistema, seria necessária, num momento inicial, a destruição do próprio objetivo e o início da construção consciente da nova linguagem.

Esta linguagem tão rica seria, simultânea e inseparavelmente, a causa original de um profundo questionamento e a forma pela qual este questionamento se expressa: seria objeto e ato, produção e processo, signo e base para significação, seria a coisa em si e aquilo que está se tornando. Se a arte estava separada dos sonhos e demônios mais silenciosos e indizíveis do homem, a linguagem seria a primeira causa da prisão humana: a primeira separação ordenada de algo selvagem e livre por essência.

Assista ao vídeo O Anticonceito, de Gil J. Wolman (legendas inéditas em português: tradução e sincronia por ju-sza)

JULIANA SZABLUK

A Paixão Selvagem (Je t’aime moi non plus)


Je t’aime moi non plus é um filme do diretor Serge Gainsbourg, lançado em 1976. Sim, isso mesmo, diretor. A ideia também não é tão surpreendente. Gainsbourg era um artista no seu estado natural, a procura de vias estuárias para sua expressão. Quem conhece sua obra, sabe como é impossível classificá-lo, dado aos seus experimentalismo e aventurismos musicais. A saber, quando petit, o menino sonhava em ser artista plástico, chegando até a estudar artes , função na qual se dava muito bem. A música veio pela necessidade de ganhar dinheiro, e o dom, veio de família. Seu pai era pianista e desde cedo o ensinava (o termo melhor seria obrigava) a ser um músico exemplar. O que cedo lhe causou uma certa repulsão, o talhou mais tarde como esse conhecidíssimo, e por que não dizer genial, artista europeu.

Voltaremos ao filme. Je t’aime moi non plus a saber é o nome da sua música mais famosa, gravada com Brigitte Bardot e Jane Birkin. A última, foi sua mulher e atriz no filme com mesmo nome. Birkin, figura de peso na vida do artista, era uma atriz inglesa, que já tinha tido uma certa visibilidade com sua atuação em Blow Up (Depois daquele beijo), filme do diretor Michelangelo Antonioni de 1966. Com ela que Gainsbourg teve sua única filha, a atriz e também cantora, Charlotte Gainsbourg.





Quando lançado o filme, gerou-se um estado de polêmica impressionante, que abalou muito o casal. A saber, Jane que era uma atriz em ascendência, ficou anos sem ter um bom trabalho, e Serge, se encontrou arrasado imageticamente. Fazer esse filme era um desejo longo dele, sendo pensado e repensado exaustivamente. O roteiro, a fotografia, cada plano é notavelmente diferenciado, tendo um estudo gaisbourgniano por trás, tanto é, que podemos dizer que o corpo físico do filme é tão elaborado que chama mais atenção que a construção de seus personagens. Temos a impressão de um intenso planejamento. Cada cena é vista como um quadro, (no sentido plástico e não cinematográfico) onde a composição dos objetos às vezes desrealça o sentimento em jogo.


Resumindo, A Paixão Selvagem é a história de um caminhoneiro, cujo nome é Krassky (Joe Dallesandro), que trabalha descarregando lixo em um aterro, em uma paisagem árida, vazia e desesperadora. Junto dele está Padovan (Hugues Quester). A relação entre ambos se extende além do trabalho, os dois estão dividindo uma intensa paixão um pelo outro. Fortes e recheados de elementos machistas, Padovan é a fotocópia de um ser sem razão, enquanto Krassky, possui o poder das situações. O espectador se divide entre onde está o amor entre esses homens, ou como esses seres brutos e descontrolados podem ter tal sentimento, e a necessidade do sexo somente. A relação entre os dois muda quando eles entram em uma lancheria à beira de estrada. Lá Krassky é atendido por uma figura dúbia e imcompreensível, Johnny (Jane Birkin). Ela é a garçonete que vai fazer a ligação entre os dois homens se distanciar.

Birkin está litaralmente vestida de meninho. Cabelo curto, olhos caídos, calça jeans e a ausência de sutiãs intrigam Krassky que imediatamente se torna obsessivo por ela, mas pelo que ela aparenta, ou seja, sua masculinidade. Começam então a ter vários encontros virtuosos.

O filme a partir daí, se resumi ao seus momentos sexuais, onde Krassky a trata como um homem, sempre a possuindo pelo sexo anal, no qual ela apesar de sofrer, entende pelo amor que sente por ele, que ao seu ver, é a única chance de salvação em meio aquele deserto de impossibilidades interiorano.


Sr. Gainsourg não conhece a manteiga?


Quando lançado, além de gerar um tumulto de ojeriza pelos seus personagens controversos, suas cenas impactantes, um dos críticos chegou a comentar a seguinte frase: "O sr. Gainsbourg não sabe que existe a manteiga?". A expressão é uma referência ao filme O Útimo Tango em Paris, em que Marlon Brando e Maria Schneider usam a manteiga como lubrificante nas cenas de amor do filme. O desastre cinematográfico só provou o quanto avante e iconoclasta Gainsbourg era, a ponto de perceber todo falso liberalismo que os anos pós-68/69 pregavam mas não nos seus limites. As suas visões das posssibilidades e amar e se relacionar não se enquadravam no seu tempo e talvez nem sejem aturados no nosso.

Paixão Selvagem continua sendo uma obra a frente da nossa visão atual, difícil de compreender numa anormalidade que é recepcionada como agressão justamente pela nossa falta de capacidade de lidar com o tema que ele propõe. É possivel para alguns espectadores que o peso das suas cenas só existam com o intuito de chocar o físico, de mostrar pura promiscuidades. Mas o que o diretor/artista plástico/músico nos mostra é que ainda não estamos prontos para qualquer tipo de empatia e possiblidades do amor, de explorar as barreiras humanas. É incrível como uma história aparentemente simplista pode desmenbrar nosso tabuleiro social. A respeito das escolhas estéticas de Serge, é uma pena que esse seja seu único filme. Seu conhecimento artistico colaborou muito para o seu domínio da linguaem cinematográfica. Não diria que é uma película genial, mas é necessário e incrível vindo do terreno de onde veio.


Curiosidades

Em uma entrevista para TV no mesmo ano do lançamento do filme, Truffaut disse quando estava no ar: "Nem se incomodem de ir ver meu filme. Vão ver o do mounsier Gainsbourg, esse sim é uma obra de arte". Foi uma bandeira salva-vida, uma das poucas críticas positivas no período.

Charlotte, a filha do cantor, viu o filme recentemente e declamou que foi uma das coisas mais lindas que já viu. Afirma também, ter chorado muito.

A obra é dedicada ao trompetista Boris Viran, amigo de Gainsbourg e conhecido no círculo existencialista de Montparnasse onde circulavam Juliette Gréco, Sartre, Beauvoir....

Recentemente foi lançado um filme sobre a carreira do cantor. Se chama La vie Heroïque. Feito pela Universal, mostra pinçadas de sua vida, sempre fumando seus inconfundíveis Gitanes e na companhia de mulheres bonitas como Gréco, Bardot, Birkin, Anna Karina (que não aparece no filme mas merece ser mencionada aqui), entre outras. A obra teatralizada parece uma destruição de humanidade do artista para elevação de ícone pop, exaltando mais seu teor cafageste e malandro do que a fidelidade de seu roteiro de vida.

Tirando o fato de não ter conseguido ver o filme até o final, com certos espamos de irritação, o filme vale pela maquiagem. Não está tão ruim assim.


NATHALIA RECH

Seleção: escritores-roteiristas

Uma pequena seleção para nossos amigos leitores, de escritores que além da literatura também ajudaram a conceber a história da cinematografia mundial.


1. Marguerite Duras



Marguerite Duras (1914-1996) era escritora e diretora de filmes, além de ter assinado o roteiro do clássico da Nouvelle Vague, Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais. Entre seus livros de destaque estáo O Amante (adaptado para o cinema com seu roteiro em 1992 por Jean-Jacques Annaud) e A Dor. Sua escrita está associada ao Nouveau Roman, o novo romance francês, que era inspirado no cinema e no existencialismo. Como diretora, fez 19 filmes, como India Song.

Duras merece o primeiro lugar por fazer colaborar com todos esses clássicos citados, estilos únicos na arte da escrita e do cinema, e além disso, ser uma teórica, pensante da sétima arte.

Frase: "Como eu tenho uma espécie de desgosto em relação ao cinema que tem sido feito, enfim, da maior parte do cinema que tem sido feito, eu queria retomar o cinema do zero, numa gramática bem primitiva… bem simples, bem primária: recomeçar tudo."

2. Alain Robbe-Grillet


Alain Robbe-Grillet (1922-2008) era escritor e foi também cineasta. Foi praticamente o fundador do Nouveau Roman, nova novela, citado acima, onde dentre Duras, figura também Nathalie Sarraute. Ele foi o autor do manifesto Por Uma Novela, onde na tentativa de revolucionar a forma de narrar, características naturalistas ou o texto Balzaquiano descritivos são descartados a favor do fluxo de consciência, interiorização do personagem. Também deixou sua marca na Nouvelle Vague, foi o roteirista de O Ano Passado em Marienbad, filme também de Renais. Escreveu 12 romances, entre eles A Espreita e O Ciúme, e dirigiu dez filmes.

Pela sua atitude de transgressão e renovação, seja em qual for a plataforma, e sua atitude de arte ante mesmo à compreensão, Grillet ganha a segunda posição.

Frase: "Eu escrevo para saber porque escrevo."


3. Jacques Prévert


Jacques Prévert (1900 - 1977), diferente de Duras e Grillet, era um poeta em primeiro lugar e depois um contador. Em 1925, participou do Surrealismo, apesar de não se fixar nele totalmente. Após o lançamento de Paroles, sua primeira coletânea de escritos, atingiu um certo público com seu humor e irreverência. O ele o grande ironizador dos costumes, aspecto saliente na maioria dos roteiros que escreveu, pertencentes ao Realismo Poético Frances. Escreveu o roteiro de 56 filmes, entre eles Jenny e Crime do Sr. Lounge. Suas principais parcerias foram Jean Renoir e Marcel Carné. Também colaborou como compositor, Serge Gainsbourg, músico francês, escreveu Les Feullies Morts em sua homenagem. Publicou em torno de 20 livros.

Pela contribuição com o realismo e não somente, esse poeta da vertente surrealista foi um grande conhecedor da sociedade de sua época, com um estilo único e revolucionário na poética escrita. Prévert fica no nosso terceiro lugar.

Frase: "Não deviam deixar os intelectuais brincar com fósforos."


NATHALIA RECH

O poeta do nada




Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá (MT). Ali começava a história de uma vida de insignificâncias. Sua família construíra uma fazenda no pantanal, desde então, Manoel aprendeu, ou melhor, desaprendeu tudo o que precisava durante as suas longas conversas com as árvores, com os riachos e com os pássaros. Ainda criança, arquitetava os poemas em seus pensamentos. Era a forma de comunicar-se com a natureza que ali existia.

Em suas Memórias Inventadas, o poeta, logo na primeira página, ataca o leitor com a sua filosofia mais iconoclasta. A frase vem sem o aconchego dos desenhos, sem parágrafo para acalmar a lógica. É uma pintura com letras que distorcem, lentamente, o papel.


“Tudo o que não invento é falso”


Um leitor desavisado, que esperava um romance narcisista, típico das autobiografias, defronta-se com um paradoxo conceitual: Existe, de fato, o passado (memórias), mesmo que baseado em fantasias?

Manoel de Barros afirma que sim. Inclusive, vai mais longe. O poeta explica que o fato que não teve a companhia da alma, no momento presente, não é verdadeiro. Aquilo que não foi importante para nós é mentira. Partindo do princípio que a importância sentimental dos fatos é, invariavelmente, concebida pela pisque humana, toda verdade (manoelina) é posta como invenção.

Essa filosofia funciona como o cerne de toda poética de Manoel de Barros. Dessa maneira, o poeta cria, na mesma proporção que destrói a língua brasileira. Propõe em seus livros a linguagem das árvores e o silêncio das pedras. Utiliza-se de metáforas como:

“Ouço o tamanho oblíquo de uma folha”

“Na voz ia nascendo uma árvore”

Manoel de Barros cria, em meio à solidão humana do pantanal, um elo transcendental entre a sua infância e os elementos que faziam parte dela. Através da humanização das coisas, procura inventar aos poucos personagens para povoar o quintal de casa.

Apesar da sua intensa produção ao longo de toda vida, Manoel de Barros, guiado pelo seu tímido sorriso enrugado, nunca se esforçou para ter seu nome difundido nas estantes do país. Parece que carregou o silêncio das árvores para dentro de sua boca. Se Manoel de Barros não tinha interesse em compartilhar suas idéias, felizmente elas acabaram agindo por conta própria.


Millôr Fernandes foi o grande descobridor desse tesouro que permaneceu durante 60 anos à margem da cultura literária do país. Em decorrência das excessivas citações e homenagens prestadas pelo jornalista, a obra de Manoel finalmente abandonou as gavetas de seu “local de ser inútil” (escritório do poeta) para invadir correndo as prateleiras da história. Desde então, os escritos de Manoel têm conquistado pessoas e prêmios ao redor do mundo. Atualmente é o escritor de poesia que mais vende no Brasil.

A fama e o dinheiro não parecem fazer cócegas no espírito do Poeta. Manoel segue desfrutando de uma vida calma com sua esposa e com a poesia de lápis.

Manoel de Barros é poeta em tempo integral. Começa a prática ao amanhecer da boca dos peixes e ao entardecer da grama cortada. Manoel, com seus escritos, abandona a vida concreta para celebrar o que ainda não existe. Sendo assim a própria poesia em existência e revolução.

Um militante da vida que suplica:

“Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:

1-Esfregar pedras na paisagem.

2-Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.

3-Perguntar distraído: - O que há de você na água? ”


LORENZO GALARÇA

Aos cem anos do Poeta da Vila



Wilson Batista contra-ataca:
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila

Noel Rosa, do outro lado da polêmica, havia começado:


Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado


Assim arrastou-se por três anos, uma produtiva picuinha entre dois dos grandes nomes da música popular brasileira. De um lado, um Wilson Batista nascendo na era das rádios e do outro Noel Rosa, já popular carioca.

Noel, ainda moço e apaixonado pelo ritmo há pouco descoberto, obedeceu a própria filosofia de suas canções posteriores: largou a faculdade de medicina para se jogar ao samba, fazendo dele sua vida.

Boemio que, mesmo vivendo no asfalto de Vila Isabel, tinha um pé no morro, soube tirar proveito dessa raiz para cada dedilhado em seus versos. Em suas letras, deu uma aula de crônica urbana, misturando questões sociais, históricas, amorosas e trágicas, ou simplesmente do jeito de viver no Rio de Janeiro. Uma social, por exemplo, assinalando o estrangeirismo latente no Brasil:


Quem dá mais por uma mulata que é diplomada

Em matéria de samba e de batucada

Com as qualidades de moça formosa

Fiteira, vaidosa e muito mentirosa?

Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis!

Ninguém dá mais de um conto de réis?

O Vasco paga o lote na batata

E em vez de barata

Oferece ao Russinho uma mulata

De história:

A verdade, meu amor, mora num poço
É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz

E também faleceu por seu pescoço
O infeliz autor da guilhotina de Paris

[...]

O amor vem por princípio, a ordem por base
O progresso é que deve vir por fim

Desprezastes esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim

ou do amor e a caricatura do povo na então capital brasileira:

Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro

A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa

[...]

Baleiro, jornaleiro
Motorneiro, condutor e passageiro,

Prestamista e o vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa

[...]

Menina que namora
Na esquina e no portão

Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa

Mesmo desprovido de qualquer beleza externa, sua conversa fiada provalvemente tenha arrastado muitas mocinhas para um foxtrot de invejar muito galã. Para ilustrar seu mérito boêmio, basta ouvir uma de suas canções mais famosas, Conversa de Botequim e descobrir que o seu escritório era o próprio bar. Infelizmente, a farra, o cigarro e o copo sempre bem servido ao seu lado, auxiliado de outras droguitas, lhe "premiaram" a ter tuberculose, mal de grande mortalidade na época. (vide outro exemplo entre muitos sambistas, o caso de Vassourinha. Vivia do mesmo jeito e falecera moço, ainda aos 19 anos. Neste último, porém, não há indicios da tuberculose ter sido o principal motivo).

Antes, até mesmo Porto Alegre recebeu Noel Rosa. Em excursão com o conjunto Ases do Samba (Francisco Alves, Mário Reis, Pery Cunha, Nonô), fez apresentação no Cine Teatro Imperial. Entre o público, até mesmo Lupicinio Rodrigues. Dias depois, enquanto o Ases do Samba passeava pela cidade, a situação se inverteu. Os cinco foram atraídos pela música tocada em um bar, ao entrar, era o próprio Lupicínio, que foi elegiado por Noel Rosa pela qualidade de suas canções.

Ainda em Porto Alegre, o "Poeta da Vila" apaixonou-se por uma moça, vizinha da pensão onde se hospedara. Conta-se no livro "Noel Rosa, uma biografia":

"Na véspera de tomar o navio, Noel conversa com a morena, ele da sua pensão, ela na janela da casa em frente. Chove muito. Noel gostaria que estivessem juntos em vez de separados pelo aguaceiro que desaba sobre a rua estreita. Alguém a chama lá dentro. A morena entra apressada, com tempo apenas para dizer:

- Até amanhã...

Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de Porto Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu quarto de pensão".
Dessa possível gaúcha, viria a inspiração para um de seus hinos:

Até amanhã se Deus quiser
Se não chover eu volto pra te ver Oh, mulher!

De ti gosto mais que outra qualquer

Não vou por gosto

O destino é quem quer

Enfim, há pouco mais do que já foi dito para se falar sobre Noel Rosa. E essas linhas tem pouca pretensão de mostrar o que ele representou, se servem para algo, é para homenagear o centenário de seu nascimento* em 2010. Sua importância já foi devidamente ilustrada por diversas gerações de músicos embriagados dele como fonte, símbolo disso, o próprio Chico Buarque.

Por pouco sua morte também não foi controversa, morreu meses antes de completar 27 anos, e assim, pela vida desregrada e pela tuberculose, daria um excelente ídolo roqueiro na "idade maldita".

Clique aqui e veja um curta tão artístico quanto biográfico de uma fase de sua vida, podendo servir de cartão postal para um Noel Rosa em pleno século XXI.
*Noel Rosa nasceu no dia 11 de maio de 1910.
RODRIGO ADAMSKI