O Letrismo/Situacionismo de Gil J. Wolman

excerto de O Mito fílmico de Guy Debord, por Juliana Szabluk

Para os letristas*, a criatividade humana é a principal motivação do homem: o foco sócio-político seria natimorto se o agente da mudança não tivesse um espírito livre e criativo. A paixão pela totalidade da vida seria a motivação maior que faria o homem ampliar seu espírito para a construção do cotidiano.

Isidore Isou, criador do Letrismo, se embasou no poeta Lautréamont (Isidore Ducasse) para construir sua Arte Supertemporal, em que o público tem participação ativa como criador e interventor. O conceito de criação, aqui, vai além do processo do produzir arte e abrange todas as esferas do conhecimento, sendo a criação a causa máxima para impulsionar o homem à consciente necessidade de ultrapassar a beleza e liberdade artística e transpô-la à vida:

o motor da evolução social não foi o instinto de sobrevivência, mas sim a vontade de criar. Por meio da vontade de criação, o artista foi da infantil existência inconsciente para a eternidade do construir uma história consciente.

Isou, em sua análise sistemática da arte, percebeu um padrão na história da arte constituído por dois movimentos complementares: as fases de ampliação (amplique) e de cinzelamento (ciselant). A ampliação e o cinzelamento são a perfeita sistematização dos processos de vida e morte das disciplinas e movimentos da arte. Analisando não apenas a arte, mas como todos os sistemas de linguagem humanos, Isou percebe que a letra é a mais rica das partículas constitutivas destes sistemas, por ser o denominador comum a todas as linguagens. Assim, Isou parte em busca do enriquecimento da letra, a única saída para reunir o que foi separado – o homem de sua linguagem e a linguagem de si mesma para retomar a comunicação humana verdadeira, além diálogo, além discurso. Por definição, temos:

- Ampliação: qualidade da lei estética, o enriquecimento do elemento e das combinações estilísticas.
- Cinzelamento: qualidade da lei estética, a destruição do elemento e das combinações estilísticas.

O cinzelamento unido à ampliação resultaria na Lei estética das duas hipóteses:

Qualquer expressão estética é constituída por dois movimentos que se seguem de forma irreversível. Um descobre, primeiramente, o enriquecimento do elemento e das combinações estéticas, e, então, o exame deste elemento até chegar à sua destruição.


Isou propõe que esta alternância se iniciou na ampliação da poesia ocidental com Homero e foi até Vitor Hugo. A primeira fase cinzelante de destruição é inaugurada com Baudelaire e sua crítica radical ao desligamento da poesia e da linguagem, em sua busca para reunir o mundo moderno, a imagem e as palavras em uma nova estrutura poética ligada com a verdade humana. A destruição, nos termos de Isou, ao contrário da negação Dadá, é um caminho para a expansão e para a utilização positiva e prática das partículas existentes, que segue um longo movimento de redução em busca da pureza.

Passando da evolução espiritual, a linguagem rumaria ao cinzelamento de seus meios materiais. Em sua procura pelo perfeito equilíbrio entre as possibilidades da linguagem, a narrativa perde seus excessos, chega à anedota e prossegue até o verso. A exploração da forma reconhece o poder da palavra tanto como significado quanto como imagem. Potencializada, a palavra pode construir metáforas, criar novas formas e dominar a página. A evolução das partículas constitutivas, portanto, era a desconstrução material da própria linguagem. Baudelaire ultrapassa a anedota, a reduz, e chega à poesia, que se destrói nos versos de Verlaine. O verso ruma às palavras de Rimbaud, vai das palavras aos padrões de som e espaço de Mallarmé e, finalmente, ao nada sem sentido de Tzara.

Para Isou, a Lei das Duas Hipóteses ocorre em todos os domínios, que vinham se "destruindo" (se reduzindo à sua pureza) em suas fases de cinzelamento até chegarem, simultaneamente, em uma etapa que exigia a ampliação. Das dezenas de campos analisados por Isou, apontamos o que ele considera o ponto máximo do cinzelamento em alguns nomes:

* filosofia de Heidegger
* a fotografia de Man Ray
* a arquitetura de Le Corbusier
* o teatro de Pirandello
* o romance de Joyce
* as ideias sobre economia de Paul Goodman
* o cinema de Jean Cocteau
* os quarks de Murray Freezing-Mann

Nem a figura de Deus escapou da lei de Isou. Deus, como um modelo externo de poder e de existência plena, iniciou sua ampliação em Feuerbach e foi até o proletário de Marx, Engels e Lênin. Em suma, tudo aquilo que constitui a humanidade enquanto tal havia chegado ao seu limite.

Para Isou, este limite correspondia a uma harmonia monótona e falta de espaço para o prosseguimento da expansão, que impossibilitava qualquer inovação criativa. O conjunto era tão aceito em seu resultado final, que se desligava da exploração dos próprios elementos que o compunham.

No caso do cinema, a relação imagem-som, estabelecida como a definição da sétima arte em si, se expandia no sentido de criar mais e mais coesão entre estes dois elementos. A busca pela expansão do conceito final deixava de lado a riqueza que cada elemento possuía separadamente dentro do próprio filme.

O cinema, no estado que se encontrava, já nascia repleto de pré-definições, de poucos caminhos a seguir limitados pela própria pobreza de seus componentes e aceitação dos criadores. Porém, após a ampliação total e a autonomia de cada elemento, as possibilidades de criação seriam ilimitadas. Som, imagem, tempo, enquadramento – até o espectador, que se resumia a assistir –, alcançariam uma autonomia tamanha, que adquiririam, em si, a riqueza do próprio filme. Reunidos novamente e coexistindo na tela, os elementos expandidos dariam origem à Arte Infinitesimal (Art Infinitésimal) ou à ciência do Esthapéïrisme, do grego esth: estética, e apéiros: inumerável ou infinito.

Em máxima instância, a busca de Isou, ainda muito ligada aos ideais surrealistas e das vanguardas anteriores, é aquela que, coerentemente, critica o plano de Breton negativamente e o ultrapassa positivamente: cria a estratégia para realização do sonho concreto e real. Para alcançar a liberdade humana primeira, estando esta frente à racionalidade estratégica do sistema, seria necessária, num momento inicial, a destruição do próprio objetivo e o início da construção consciente da nova linguagem.

Esta linguagem tão rica seria, simultânea e inseparavelmente, a causa original de um profundo questionamento e a forma pela qual este questionamento se expressa: seria objeto e ato, produção e processo, signo e base para significação, seria a coisa em si e aquilo que está se tornando. Se a arte estava separada dos sonhos e demônios mais silenciosos e indizíveis do homem, a linguagem seria a primeira causa da prisão humana: a primeira separação ordenada de algo selvagem e livre por essência.

Assista ao vídeo O Anticonceito, de Gil J. Wolman (legendas inéditas em português: tradução e sincronia por ju-sza)

JULIANA SZABLUK

2 comentários:

  1. Como faço para ler o resto do texto?

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  2. Uma pena o vídeo não estar mais disponível - ou então, eu cheguei tarde demais.

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